Grupo circense catalão coreografa os efeitos de uma boa leitura

por Dib Carneiro Neto

Como resistir a um espetáculo em que o palco fica o tempo todo ocupado por livros? Sim, livros. O objeto livro. Coisa rara entre as novas gerações digitais, que agora leem tudo (se é que leem algo) em seus tablets ou mesmo nos smartphones. Como é importante cultuar o livro nos dias de hoje… E esse espetáculo circense, vindo da Espanha, Ex-Libris, faz isso do começo ao fim.

Trata-se de um agradável exemplar do casamento do circo com a dança, a cargo da Cia Voël, criada na Catalunha, em 2017. Talvez o mais atraente da curadoria dessa edição do Circos – Festival Internacional Sesc de Circo, já em sua quinta edição, seja justamente essa variedade de linguagens e gêneros, essas interfaces multidisciplinares que se acasalam lindamente com as técnicas circenses. Um espetáculo é mais teatral, outro mais coreografado, outro com ilusionismo, outro com trapézio, outro com malabares – mas tudo passa prioritariamente pelo circo. Quanta riqueza, quantas combinações possíveis.

Ex-Libris é bastante coreografado e fortemente calcado em acrobacias. Tem leveza, poesia, uma calma incomum, uma falta de pressa que até comove. Começo falando da trilha sonora, porque o músico (Marc Sastre) ao vivo com seu violão dá um show de interpretação à parte, com um incrível bom gosto musical. Às vezes canta, às vezes apenas dedilha seu violão com virtuosismo, mas tudo se encaixa perfeitamente ao que se está vendo no palco: uma viagem por meio de livros.

A cena inicial cativa as crianças logo de cara, justamente uma brincadeira gostosa de juntar o som com a ação cênica. Cada vez que o ator (Jordi Serra) abre um livro, o músico (Marc Sastre) faz um som, ou solta um grito, ou canta coisas em gromelôs, dando a ideia de que há uma música que brota de dentro de cada brochura. Lindo. Até o ato de folhear rapidamente as páginas ganha um som característico na boca do músico. A garotada entra no espetáculo por essa via infalível do lúdico. Outra brincadeira é o ator arrumando os livros como se fossem bancos de se sentar, e o outro não deixa que ele se sente. As crianças gostam desses jogos cênicos e embarcam muito na ideia de “brincar com livros”. Sim, livros existem também para que a gente brinque com eles.

O forte desse circo coreografado pelos espanhóis é a poesia visual que vai surgindo nas cenas e nos surpreendendo com encanto. Páginas soltas que voam pelo palco, chuvas de papéis, o dominó de livros encadeados, um voo da atriz ao se apoiar em um livro. Tudo é metáfora, tudo é simbólico, representando plasticamente o quanto a leitura pode ter esse poder de nos fazer voar, nos fazer nos apaixonar, nos fazer dar cambalhotas pela vida.

Achei incrível a forma escolhida para fazer a atriz (Deborah Cobos) entrar em cena pela primeira vez, depois de mais de 15 minutos de espetáculo só com a presença do ator no palco (Jordi Serra). Desde o começo, inclusive durante a entrada da plateia no espaço, os livros estão todos enfileirados como peças de dominó. É só surgir a figura feminina em cena para que todos os volumes tombem no chão, impulsionados por ela. A ideia é límpida e clara: uma representação da chegada do amor na vida de alguém. O amor, ou uma amizade forte, ou uma sintonia qualquer em ebulição, sentimentos assim, que causam frio na barriga e acontecem principalmente na passagem da infância para a adolescência. A revolução que isso provoca em nosso interior. O cara está lá, tranquilão, lendo seus livros, quando surge a menina para “bagunçar o coreto”, agitar sua rotina, desarrumar toda a “estante”. O amor tem essa força – e a cena é muito eficiente, sem ser óbvia.

Gosto demais também da forma dramatúrgica com que o número do chamado “quadrante coreano”, especialidade dessa cia, é utilizado no espetáculo. A técnica em que dois artistas sobem em uma pequena plataforma no topo de dois mastros e ali realizam estripulias com trapézios serve aqui para retratar um clima romântico de conquista amorosa. Talvez seja o momento do primeiro “namoro” entre o casalzinho. A cena começa com ela no solo, lendo seu livro. E é como se estivesse lendo um romance, pois de repente sua imaginação voa à procura de um príncipe ou herói, que está lá no alto do trapézio e a arrebata para perto dele. Ler aproxima as pessoas, enreda-nos. Amores da literatura nos inspiram a ‘voar’ em busca de nossos próprios amores. Eis o que a cena retrata. Magnífica composição. O circo a serviço de contar uma história. Uma história ex libris, ou seja, uma história “dos livros”, da posse dos livros, como indica a expressão latina escolhida para dar título a essa festa. Aplausos de pé.

Leia + : Mais livros, menos ignorância – A poesia no circo, entrevista com a Cia Vöel sobre o espetáculo Ex-Libris.

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Os livros são as armas mais poderosas que temos contra a ignorância que avança de tempos em tempos.
A beleza plástica da mistura entre a leveza da dança e os gestos rígidos da técnica circence, a iluminação intimista e a cenografia de Ex-Libris nos transportaram para o universo poético, onde se pode sonhar com as infinitas possibilidades da vida e perceber a ignorância que a falta dessa conexão com o livro pode gerar.

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