O chefe, o soldado e o faminto

por Esther Fernandes

Com atuações e tempos palhaço impecáveis, Ordinários da Cia. La Mínima excede às expectativas. Dentro de um contexto de circo contemporâneo, o espetáculo entrega ao espectador uma dramaturgia que se passa em uma situação de guerra. Não é de se espantar que uma companhia, a qual está completando 22 anos de existência, e que acompanhou o programa “Palhaços sem fronteiras” (uma organização sem fins lucrativos que realizam espetáculos de palhaçaria e artes circenses destinadas para campos de refugiados, abrigos, ocupações, alojamentos) tenha um enredo inteligente como resultado dessa criação.

As três personagens: o chefe da expedição interpretado por Filipe Bregantim, o soldado com lado mais poético performado por Fernando Paz e um soldado faminto atuado por Fernando Sampaio, têm por objetivo  encontrar o major que supostamente caiu nas mãos do lado inimigo do confronto.

O chefe da expedição é o que conduz o grupo, o faminto é um dos mais engraçados e o poeta é o sonhador e, por vezes apaziguador de brigas com cartas de parentes supostamente vindas pelo correio, mas que foram inventadas pelo mesmo e a chegada delas eram anunciadas em momentos para apaziguar intrigas. As cartas remetiam à subjetividade mostrando um lado mais humano das personagens em situação de conflito.

O faminto por sua vez, é uma personagem que, naquele contexto, entra na comicidade com uma crítica que aperta lá dentro: a fome. Ele foi para a guerra para ter o que comer. Enquanto há uma abundância de recursos financeiros para patrocinar a guerra, do outro lado temos a escassez de dinheiro aplicado para erradicar a fome.

As interações entre as três personagens são harmônicas e, em algumas ocasiões são utilizadas soluções improváveis em cena, com diversos elementos, como quando um deles anuncia “Daqui há pouco a noite chega”, há uma troca de luz clara para uma luz azul com um som evidenciando o momento dessa alteração, e todos os soldados olham para os refletores dando o tom de comicidade.

Talvez o traço mais belo da pintura desse quadro, foi a poética de que quando os soldados descobrem em território inimigo que seriam atacados em desvantagem, eles utilizam a arte do circo como forma de sobreviver à morte. Fazendo dois soldados (o poeta e o faminto) de ventríloquos, para entreter o lado inimigo representado nesse momento pelo público, o discurso nessa parte envolve questionamentos antigos que se fazem necessários até os dias atuais e, ao mesmo tempo entregam risadas.

O foco de luz nas botas que ficaram ali nas minas terrestres ao final do espetáculo, traz a mais pura emoção de ter sido tocado por toda subjetividade dentro dessa dramaturgia de guerra.

Texto produzido durante o laboratório (Dis)Parem as máquinas! – fundamentos e práticas de crítica circense, sob supervisão de Maria Carolina Vasconcelos Oliveira.

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