Num cotidiano repleto de surpresas, riscos e paradoxos, a realidade exige habilidades circenses. A topografia dos acontecimentos não é para amadores: há que se contorcer, equilibrar, por vezes fazer mágica, quase sempre rir de si mesmo. É como se o picadeiro se confundisse com o espaço urbano, no que isso tem de encantador e desafiante.
Algo análogo ocorre com instituições dedicadas à cultura. Ao lidar com uma matéria maleável, tais instituições fazem malabarismos numa corda bamba, percorrendo um ambiente em fluxo, sem aprisioná-lo em esquemas simplificadores.
Vale pensar o circo como metáfora da ação em cultura. Considere-se, por exemplo, a capacidade dos profissionais circenses de ultrapassar a divisão entre linguagens artísticas, disposição que se notabiliza em espetáculos que mesclam musicalidade, capacidade física, expressão corporal, teatralidade, aspectos plásticos, dentre tantos outros traços. Observar esse exemplo pode implicar a compreensão do caráter orgânico da cultura, bem como da artificialidade de suas fronteiras.
A experiência do circo sugere outro elemento para inspirar a ação cultural: o trabalho coletivo. Ancorada, inicialmente, na tradição familiar, as metodologias de trabalho que destacam a cooperação e a polivalência permanecem válidas, valorizando diversos tipos de saberes e sublinhando a vocação de rede das dinâmicas culturais. O protagonismo individualizado cede lugar a uma concepção plural do fenômeno sociocultural, revelando uma vigorosa faceta política e ética.
A crescente presença do circo na programação do Sesc, assim como a realização da quinta edição de CIRCOS – Festival Internacional Sesc de Circo, relacionam-se com esses apontamentos. Nesse caminho, o Sesc deixou-se progressivamente contaminar por ensinamentos circenses. Em 2019, o atravessamento de limites – na direção das outras artes, outros saberes, mais pessoas – ganha relevo. Mais do que uma opção estética, é um posicionamento na esfera das políticas culturais. Afinal de contas, a relevância das expressões artísticas reside nas conexões com as coisas do mundo, subvertendo fronteiras convencionalmente desenhadas, apostando no risco e na disponibilidade para o contágio.
Danilo Santos de Miranda
Diretor do Sesc São Paulo