Halka

por Maria Carolina Vasconcelos Oliveira

Halka é um trabalho do Le Groupe Acrobatique de Tanger (Marrocos), criado em 2016. Na cena estão 14 acrobatas/músicos (sendo duas mulheres), poucos objetos cênicos (destaca-se o djefna, bacia de lata que também é usada como instrumento musical) e pouca cenografia: basicamente areia, num determinado momento do espetáculo, além de alguns recortes quadrados ou redondos desenhados no espaço cênico pelos próprios focos de luz.

Usando elementos acrobáticos e música, o grupo (quase sempre todos juntos) nos conduz por cenas, situações e jogos, muitos dos quais não etendemos perfeitamente. Em conversa após o espetáculo, o grupo confirma que prefere não traduzir os textos e músicas para nenhuma língua ocidental, deixando com que os espectadores completem seus próprios sentidos. E o trabalho sim nos acessa, possivelmente por uma dimensão “universal” – ou, prefiro pensar, porque acessa um imaginário que construímos no Ocidente sobre aqueles que talvez sejam nossos “outros” mais radicais, a África e o mundo islâmico. Fato é que a poética parece funcionar muito bem, já que o grupo vem se apresentando no mundo todo há mais de dez anos.

O Groupe Acrobatique de Tanger é resultado da empreitada de sua diretora, a marroquina Sanae El Kamouni que, acostumada a ver os jovens de Tanger praticando a tradição acrobática em praças e praias, e já com uma certa fluência no mundo das artes e da cultura, teve a ideia de formar a companhia. Para isso, convidou Aurélien Bory, da Cie 111, de Toulouse (França), que já tem um reconhecimento na cena do circo contemporâneo. Os dois reuniram uma trupe de acrobatas marroquinos, alguns deles da família Hammich, praticante de acrobacias há muitas gerações e cujos integrantes já fizeram parte de alguns circos.

A tradição acrobática do Marrocos é uma tradição de guerra. Ela é praticada em rodas (halka, o círculo, como na nossa capoeira) e transmitida por tradição oral, dos mais velhos para os mais novos. A história social desta prática e a própria espacialidade do círculo reverberam corporalmente numa série de características de movimento que tornam o repertório um pouco diferente da acrobacia que conhecemos no ocidente – por exemplo, há uma preponderância de movimentos cujos eixos parecem ser mais diagonais e laterais, provavelmente pensados para serem realizados em roda e não na pista reta.

O que faz com que classifiquemos o trabalho do grupo como “circo”? O que faz com que esteja num festival de “circo contemporâneo”? Como bem coloca Aurélien Bory, no site da companhia, “a acrobacia marroquina não é uma prática espetacular, mas um modo de vida”. É cultura, portanto, no sentido de uma prática ordinária e comum a todos os membros de um determinado grupo – como definido por Raymond Williams –, muito antes de ser “arte”, como produção extra-ordinária e socialmente organizada. Se essa tradição acrobática parece já ter sido absorvida pela esfera da arte há tempos – já que diversos acrobatas de gerações anteriores já trabalharam em circos –, isso provavelmente tem a ver com a própria tradição circense de acolher e ressignificar uma enorme variedade de práticas corporais no contexto do espetáculo. No Groupe Acrobatique de Tanger, chama atenção o fato de o processo de “artificação” (usando o termo de Nathalie Heinich e Roberta Shapiro) envolver cânones das artes cênicas ditas contemporâneas, o que provavelmente se deve à trajetória de Sanae El Kamouni, à parceria com Aurélien Bory, aos períodos de processo de criação que o grupo desenvolveu em território francês (onde a pesquisa em circo contemporâneo é especialmente forte), e talvez também à proximidade com a instituição filantrópica do BNP Paritas, financiadora do grupo e que apoia uma série de outros criadores e trabalhos da cena contemporânea. Há em Halka uma série de elementos cênicos que em alguma medida já foram estilizados como códigos de uma certa estética contemporânea, como o já mencionado minimalismo em figurinos e elementos cênicos; uma incorporação de situações, gestos e movimentos cotidianos (em oposição àqueles que são mais claramente encenados e espetacularizados); alguns movimentos que remetem à dança entendida como contemporânea; e sobretudo uma preferência pela poética da performatividade e da presença, mais do que da re-presentação ou dos cânones associados ao teatro dramático.

Destaco uma certa tensão não resolvida, em Halka, justamente entre momentos em que prevalece o registro cultural “espontâneo” (da cultura como modo de vida, do jogo, do ritual) e outros momentos em que prevalecem registros e situações associados ao que se entende por artes cênicas contemporâneas (por exemplo, as partituras de dança mais comuns ao repertório dito contemporâneo). A impressão é que as primeiras operam na lógica da performatividade (são mais “reais”, poderiam estar acontecendo de fato numa praça ou praia), enquanto as segundas são mais encenadas/representadas, e isso às vezes cria para o espectador uma espécie de degrau, como se tivéssemos que mudar o registro cognitivo de um momento para o outro.

Se lebramos que a classificação de “arte contemporânea”, bem como seus cógidos e parâmetros, são definidos no contexto da arte europeia e do hemisfério norte (como quase todos os parâmetros que entendemos como gerais da esfera da arte), percebemos que essa tensão que ocorre em Halka no nível cênico remete a uma tensão mais profunda, entre uma experiência no mundo construída a partir do olhar europeu e outra construída a partir o olhar não-europeu. Inevitável pensar também nos processos de colonização e na dimensão geopolítica dos processos de alterização. Essa tensão parece ser abordada de maneira bem consciente no espetáculo, a julgar pela pela presença de intérpretes de terno, em algumas cenas, em oposição aos demais que utilizam roupas “comuns”.

Nesse sentido, aquele estranhamento ou não-afinamento entre as camadas cênicas, que poderia a princípio ser visto como um problema (se pensamos na coerência da obra), em Halka acaba funcionando como algo que deflagra uma incoerência maior, que está na esfera da cultura como um todo e nao só na obra artística. Nos faz refletir sobre essa incompatibilidade e sobre a impossibilidade de uma integração completamente harmônica – que talvez nem mesmo seja desejável, em tempos em que o consenso forjado soa tão démodé. 

Texto produzido durante o laboratório (Dis)Parem as máquinas! – fundamentos e práticas de crítica circense, sob supervisão de Maria Carolina Vasconcelos Oliveira.

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