Circo, diversidade de vozes e identidades

Em 2011, a revista francesa Stradda, que trata de circo e artes de rua, trouxe um interessante dossiê sobre “arte no feminino”. O texto apontava uma saída de cena metafórica de figuras como a assistente do mágico ou “a esposa do dono do circo que desfila sobre um elefante” para, a partir de exemplos europeus, apresentar produções circenses contemporâneas de autoria de mulheres e que fogem dos estereótipos associados ao feminino.

Sendo uma realizadora e pesquisadora do circo dito contemporâneo, admito que não me sentiria confortável em julgar as abordagens de gênero do circo clássico somente a partir da observação de suas práticas cênicas, sem considerar o contexto histórico das produções e a trajetória social dos artistas. No entanto, também não é possível ignorar que certas representações da cultura patriarcal vêm operando, historicamente, em diversos elementos narrativos do circo. Além disso, em outras áreas como o teatro ou a música, discussões sobre identidades de gênero já vêm sendo realizadas há mais tempo e assumem uma complexidade maior – por exemplo, a discussão sobre identidades de gênero não-normativas e uma cena queer já são mais estabelecidas.

A relação mulher e circo definitivamente não é simples. De um lado, ainda hoje figuram em cena uma série de imaginários estereotipados – mulheres sendo postas para encenar certas representações associadas ao que se entende por “feminino” e por “beleza” (normalmente por meio da reprodução de gestuais “suaves” ou “sedutores”), ou compondo cenas como assistentes, ou emprestando seus corpos como enfeites em situações em que o protagonismo está com o homem etc. De outro lado, como lembra Janet Davis (2011), ao imaginário do circo também estão coladas representações de liberdade, poder e não-conformidade (estética, física e de modos de vida), que transbordam também para as “mulheres do circo”, contrariando as narrativas mais tradicionais de submissão e fragilidade.

Erminia Silva (1996), a partir do contexto brasileiro, mostra como as mulheres sempre assumiram diversos papeis na manutenção do modo de vida do circo-família, em que o trabalho tem um caráter coletivo e comunitário. A atuação das mulheres inclui tarefas que se expandem para muito além da esfera doméstica (construída como o “lugar da mulher” na narrativa convencional burguesa), envolvendo diversos tipos de trabalho que também são partilhados com os homens, como confecção e montagem de aparelhos, figurinos e cenários; cuidado de animais; transmissão de conhecimentos e habilidades para as gerações mais novas etc. E, sobretudo, como mostra Silva, a mulher no circo “desde que nasce, vai ser preparada para realizar uma atividade que requer mais que o cumprimento de sua jornada de trabalho como mãe e doméstica: ela será uma artista de circo à noite” (ibidem, pp. 58-9). Ainda assim, a autora pondera que a estrutura do circo-família não foge do modelo de funcionamento mais geral do regime patriarcal, o que reforça a ideia de que se trata de uma relação contraditória e complexa.

Mas, afinal, por que é importante diversificar as narrativas construídas a partir do ponto de vista masculino e heteronormativo no circo e nas artes? Para além da justificativa política mais geral da igualdade de gêneros, esse tema também reverbera na questão da diversidade de expressões culturais e artísticas, hoje entendida como um pressuposto importante da ação cultural. Se as obras de arte refletem suas condições de produção, a diversidade (ou a falta dela) de vozes dentro das classes artísticas certamente reflete numa diversidade (ou na falta dela) nos temas e estéticas abordados em cena. Quanto maior a pluralidade de narrativas, subjetividades e possibilidades de existência, mais rica a produção artística.

Observando o contexto atual, parece que a cena circense de São Paulo está vivendo um momento de transformações importantes. Além do aumento de projetos propostos por mulheres nos editais estaduais e municipais, vemos também a emergência de companhias conduzidas por mulheres e/ou que abordam o tema das identidades de gênero e até mesmo uma cena queer começando a tomar forma. Vemos também uma proliferação de eventos e encontros produzidos por mulheres, numa reivindicação de emancipação também nos modos de produção. Vale mencionar que, no Brasil, a palhaçaria feminina e a cena das artes de rua têm protagonismo nesse movimento, que hoje se desdobra num universo pungente de cabarés femininos.

Um próximo passo importante, a meu ver, seria diversificar os discursos e temáticas presentes nos trabalhos feitos por mulheres, para evitar classificações como a de “arte feminina”, construídas como um estilo estereotipado – algo que já aconteceu na passagem para o século XX no contexto das artes visuais. Nesse sentido, valeria pensar no absurdo que soaria uma categoria como “arte masculina”. Assim como os homens estão aptos a refletir, em cena, sobre todos os temas imagináveis e a mobilizar todas as referências estéticas e poéticas disponíveis, as mulheres também não precisam ficar restritas a temas e abordagens entendidos como “femininos”.

Que sigamos no caminho de construir narrativas de gênero plurais e diversificadas no circo!

 

DAVIS, Janet (2011). “Brazen, Bare, Beautiful and Bearded: Circus Women and the Making of Modernity”. In: KRALJ, Ivan (ed) (2011). Women & Circus. Croácia: Mala performerska scena.
SILVA, Erminia (1996). “O circo: sua arte e seus saberes. O circo no Brasil do final do século XIX a meados do XX”. Dissertação de mestrado. Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas.
STRADDA (2011). “Un cirque d’un nouveau genre”. In: Stradda: le magazine de la création hors les murs. Número 21, julho de 2011.

 

Maria Carolina Vasconcelos Oliveira é artista circense e socióloga. Tem formação básica em dança; formação livre em circo com professores brasileiros (nas escolas Picadeiro, Academia Brasileira de Circo e Galpão do Circo) e estrangeiros (como Aimée Hancock no NECCA, EUA); mestrado e doutorado em sociologia pela FFLCH-USP. Aerialista há mais de 15 anos, fundou núcleos como Desastre e A Penca e colabora com outras companhias como intérprete, diretora e preparadora. Orienta oficinas de técnicas aéreas e ateliês de criação (Centro Cultural da Juventude e Tendal da Lapa), desenvolve pesquisas na área de cultura e artes (Cebrap) e foi docente em cursos como a pós-graduação em Cultura e Globalização (Escola de Sociologia e Política) e em Gestão Cultural (Senac). É coautora de Cultura e Participação: a experiência da III Conferência Municipal de Cultura de São Paulo e Políticas Públicas de Cultura.

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