A renovação do circo nas últimas décadas vem se dando, em grande parte, por dar maior espaço à dança, consolidando uma relação já há muito existente, mas que tem se potencializando de forma significativa.
Coreografias sempre estiveram presentes nas artes circenses como estratégia de encenação, mas nas últimas décadas elas vêm tomando papel preponderante, às vezes isoladamente, às vezes mescladas com outras técnicas, como com as acrobacias. Esse espaço crescente tem muito a ver não só com a erradicação dos números com animais selvagens, mas com a própria afirmação da relação entre dança e circo.
Tem sido comum essa relação em ambas as vias. Importantes coreógrafos como o francês Philippe Decouflé, responsável pela abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno, em 1992, e da peça Iris (2011) para o Cirque du Soleil, e o sérvio Josef Nadj, possuem espetáculos com forte referência no universo do circo. Não por acaso, ambos estudaram com o mímico francês Marcel Marceau.
No Brasil, a coreógrafa Deborah Colker destaca-se como a mais intensa impulsionadora desta relação com o circo: sua ocupação do palco sai dos limites da horizontalidade para escalar paredes com efeitos acrobáticos, indo assim além do movimento tradicional. Ela foi a primeira mulher, aliás, a dirigir um espetáculo para o Cirque du Soleil, Ovo, em 2009, que circulou pelo Brasil agora em 2019.
Se duas citações para o Cirque du Soleil, criado em 1984, já foram feitas ao logo deste texto, elas ocorrem pela importância que ele exerceu na reinvenção da linguagem circense e por se tornar uma referência importante da aproximação com a dança contemporânea, que sempre buscou o grande público através de estratégias de ampliação do repertório do movimento. Ao invés dos gestos clássicos, também foi incorporado à dança andar, correr ou nadar, como ocorre em muitas peças da coreógrafa alemã Pina Bausch, para dar um exemplo. Bausch, que iniciou sua carreira nos anos 1970, foi uma das fundadoras da dança contemporânea justamente ao misturar à tradição elementos da cultura popular.
Enquanto nas cortes francesas a dança sempre exerceu um papel de validação do poder e reforço das regras de civilização, o circo foi sempre sua antítese: o espaço do lúdico, do fantasioso e do popular. São justamente essas três marcas que tantos coreógrafos contemporâneos como Bausch buscaram e buscam ao se inspirar no circo. E transformar a banalidade dos gestos do cotidiano em magia é uma das chaves importantes dessa tríade.
O que o compositor Richard Wagner buscava na ópera, com a proposta da “obra de arte total” (gesamtkunstwerk), unindo dança, música, canto, teatro e artes visuais, de certa forma sempre esteve presente no circo, mas fugindo da ótica da chamada cultura erudita.
Assim, o que o circo vem trazendo para a dança nos últimos 50 anos é a capacidade de se comunicar diretamente com o público por meio de efeitos que variam entre diversão, perigo, emoção e drama. E foi justamente por ter conseguido se apropriar desses elementos, que agora é a dança que adentra o circo, reforçando um diálogo que só tende a crescer.
Fabio Cypriano é doutor em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, com pós-doutorado pela USP, pela pesquisa A Bienal e a elite de São Paulo. É coordenador do curso de Jornalismo na PUC-SP, onde também é professor na pós-graduação e na graduação. É do conselho editorial das revistas South as a State of Mind (Grécia) e ARTE! Brasileiros, co-autor de Histórias das Exposições, Casos Exemplares (EDUC, 2016) e autor de Pina Bausch (Edições Sesc, 2018), entre outros.