por Michele Rolim
No mito bíblico da Torre de Babel, os descendentes de Noé decidem construir uma torre alta o suficiente para chegar ao céu e assim o homem se igualaria ao próprio Deus. Diante de tanta ousadia, Deus decide interromper o estranho projeto, confundindo e embaralhando a linguagem humana. Frente a muitas dificuldades de comunicação, a construção da torre é parada. Dessa forma, a diversidade de línguas no mundo é explicada como um castigo divino.
A história bíblica serve como mote da companhia sueca Kaaos Kaamos no trabalho intitulado Babel, glöm (Babel, esqueça). Como evidenciado no título, a companhia “brinca” com a ideia de que esqueçamos a incomunicabilidade e dificuldades de cooperação sugeridas pelas diferenças linguísticas.
O espetáculo reúne seis acrobatas de quatro países diferentes (Suécia, Finlândia, Alemanha e França). A diversidade cultural do grupo e o repertório individual de cada artista são colocados em destaque, pois a proposta é justamente que as diferenças possam fortalecer e instigar as relações, as comunidades.
Erika Ahola, Johan Sjölund, Elisabeth Künkele, Perry Rudolph, Anouck Le Roy e Erik Glas são performers, parceiros e cúmplices em cena. Seus corpos realizam acrobacias com obstáculos provocados pelos próprios companheiros de cena, que geram o risco e expõem a vulnerabilidade dos artistas. A todo momento, esse dispositivo desestabiliza a virtuose da acrobacia tradicional, criando outras formas de relação do artista com o corpo, com a acrobacia, com a cena.
Os acrobatas estão mais preocupados em problematizar o ato de estar juntos do que em apresentar um espetáculo dito virtuoso. E a melhor forma de estar juntos é poder brincar juntos. Tanto que o erro faz parte da dramaturgia do espetáculo. Eles se permitem experimentar em cena, o que também confronta a nossa cultura, que valoriza os acertos e condena os erros. Aqui o erro é ressignificado, ganha amplitude, mostra que falhar é algo igualmente natural em nossas vidas e aciona mecanismos de evolução e superação. E, mais do que isso, o erro sempre estará presente em uma comunidade. Resta saber o que fazer com ele.
Pode-se dizer que a montagem questiona o lugar da virtuose acrobática no circo contemporâneo. Não que a virtuose não esteja presente. Ela existe e está a favor do processo criativo, porém não é o cerne do espetáculo. Por vezes, é um dispositivo que serve para descobrir outras formas de movimentação.
Em alguns momentos, cada artista fala o texto na sua própria língua materna, fazendo referência ao mito da Torre de Babel, mostrando que a comunicação é também possível de outras formas. O espetáculo assume que a palavra não é a única forma de comunicação possível, pois as imagens e sensações produzidas durante a apresentação são mais potentes.
Essa montagem reposiciona o lugar do brincar e do estar juntos no circo como forma de afeto. E afeto, aqui, é entendido como se deixar afetar e assim abrir possibilidades de criar novas potências de agir e outras formas de existir.
Este é o primeiro trabalho da Kaaos Kaamos e é inédito nas Américas. A direção e a produção são assinadas em conjunto pela companhia e por Albin Warette.
O circo não precisa de uma língua para se comunicar. A concentração durante uma acrobacia, as rugas de um esforço ou o ritmo frenético de um malabarismo são suficientes para emocionar e surpreender.
Confira a conversa com os artistas da cia Kaaos Kaamos sobre a linguagem do circo.