*“A guerra não acaba quando chega ao fim. É uma ferida que cicatriza, mas nunca para de sangrar”.

por Caco Mattos

Ordinários com LaMínima Circo e Teatro trata com humor crítico as situações vividas por três soldados numa zona de conflito. 

Se o palhaço parodia o homem em si, ele revela também suas aflições, seus medos, angústias, esperanças e paixões.

Se o riso age diretamente no intelecto, a experiência ao assistir o espetáculo desconstrói esse pensamento. O coração é destituído de sua insensibilidade e comove. Ordinários, é cômico, é poético e crítico. 

LaMínima, com esta montagem, desmonta o imaginário de que os palhaços estão fadados a fazer rir, apenas. Seguindo uma narrativa não dramática e ilusionista, o fio temático que alinhava todo o espetáculo é a guerra tratada sob o ponto de vista do palhaço.

Composto por uma escrita cênica que conjuga texto, comicidade corporal e estados de almas, apresenta uma justaposição de situações cômicas e poéticas revelando a humanidade dos cômicos e suas inquietações.  O roteiro e a organização das materialidades de pesquisa, foi criado colaborativamente em parceria com o dramaturgo Newton Moreno, o diretor Álvaro Assad e os atores da LaMínima. O que nos é apresentado é uma fusão de linguagens que se desdobram em camadas. O texto, os números musicais, a sonoplastia, a pantomima, as piadas físicas, o jogo e a relação com os objetos reforçam a comicidade e a poesia da cena. 

O diálogo que se estabelece entre a pesquisa do repertório da palhaçaria clássica, acumulada durante os 22 anos de trajetória da Cia., aliada a investigação e elaboração de um discurso cênico que se utiliza de dados e acontecimentos da atualidade, gera reflexão e questionamentos sobre qual o sentido da guerra. Para quem ela faz sentido? 

O trio, formado pelos atores Fernando Sampaio, Fernando Paz e Filipe Bregantim, com seus tipos e singularidades, constroem uma engrenagem perfeita, criando uma mecânica matemática afinada para a comicidade emergir. 

O cômico do trio é Fernando Sampaio. Uma mistura de poesia humana grotesca e inadequada com uma dose de irresistível humanidade. Representa aqueles que têm fome, que tem medo da morte e não vê sentido na guerra. Aliás, entra na guerra justamente para comer e com isso denuncia e evidencia metaforicamente o quanto se gasta para produzir armas e o quanto para matar a fome da humanidade. Armas e fome. Armas e dor.

Fernando Paz é o mediador dos conflitos que surgem entre eles. É o poeta que cria ficções para dar esperança e coragem aos parceiros e tornar suportável suas existências. Resistir com poesia é sobreviver diante das atrocidades criadas pela humanidade.

A autoridade instituída, em algumas situações satirizada e questionada é o tipo criado por Filipe Bregantim. Suas atitudes corporais trazem a rigidez da disciplina adquirida nos quartéis e, associada ao traço utilizado em sua maquiagem como uma assinatura de sua personalidade, revelam características muito semelhantes ao tipo tradicional do Clown Branco. É uma espécie de diretor em cena, obstinado na sua função e missão de conduzir os dois soldados. 

Três individualidades distintas, com temperamentos e lógicas diferenciadas, mas ao mesmo tempo complementares, que ao se depararem com a opressão vinda de fora, unem suas forças e coragem para combatê-la. E é, justamente na fricção das relações que as hierarquias e as personalidades se desvelam, o jogo ganha em potência e dinâmica, e as fronteiras entre contemporâneo e tradição se diluem.

*fragmento do texto dito por Fernando Paz no espetáculo “Ordinários”.

Texto produzido durante o laboratório (Dis)Parem as máquinas! – fundamentos e práticas de crítica circense, sob supervisão de Maria Carolina Vasconcelos Oliveira.

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