Afinal, quem está preparado para a guerra? Os ordinários?

por Maria Silvia do Nascimento 

A peça nos apresenta três soldados em campo de batalha. Não há cenário. O palco é preenchido apenas pelo desempenho dos três artistas, suas respectivas mochilas e bancos.

O tédio na espera da missão é combatido por uma competição musical de gaita, cada homem quer se provar melhor que o outro, demonstrando sua destreza e, principalmente, disputando quem tem o maior instrumento.

De cara já notamos quem é quem. Felipe Bregantim é o chefe, autoritário, másculo, seu maior sonho é voltar para casa cheio de medalhas depois de grandes feitos nas batalhas. Fernando Paz é o poeta, sensível, reflete sobre as situações e cria ficções para tornar mais humana a vida na guerra. Fernando Sampaio é o parvo, ingênuo e sempre faminto, tornou-se soldado apenas em busca de comida. Todos são palhaços. Ou melhor dizendo, utilizam-se de sua formação e experiência na arte da palhaçada para construir as personagens e, consequentemente, forjar a linguagem do espetáculo.  Os três personagens formam o corpo da tropa, ou melhor, da trupe. O primeiro representa o tórax, a força bruta e ímpeto; o outro, o baixo ventre, sempre interessado em comer e não se constrange com suas flatulências; e o último, a cabeça, cheia de reflexões e palavras.

Nas mãos dos palhaços, objetos simples são transformados: o desentupidor de pia em rifle e uma trena de madeira em antena de transmissor. Apresentam mímica precisa, tapas e tropeços bem executados, expressões faciais contundentes, timbres de voz extra cotidianos. A música povoa o enredo e é responsável por momentos sublimes. Há momentos hilários de nonsense, que brincam com o tempo desproporcional e o espaço sem limites. 

A lógica da arte da palhaçada destaca-se na relação das três figuras que se equilibram de forma harmônica, em uma precisão e espontaneidade indiscutíveis. Adjetivos que a princípio parecem excludentes, para a cia La Mínima, combinam-se a fim de produzir grandes efeitos cômicos. Ao mesmo tempo em que há grande técnica na execução de gags e na gestualidade, há a sensação de que tudo é uma grande brincadeira divertida para o elenco e, consequentemente, para o público.

Os pontos altos aparecem quando o soldado parvo desafia a autoridade do chefe, tanto com bofetões quanto em respostas inusitadas. O público adora ser cúmplice dessa reviravolta e também se delicia nos contrastes entre a coragem e covardia do chefe. Seus grunhidos que soam como ordens são graves e guturais, sublinhando sua masculinidade. Por outro lado, seus sustos são expressos por gritos agudos, mostrando sua fragilidade diante do perigo.

A comicidade também surge no excesso de explicações e parnasianismo do poeta. Mas daí também vem as reflexões mais poéticas da peça, como a importância da arte e da ficção para se manter a dignidade diante das situações mais desumanizantes. 

E é sobre isso que recai a construção dramatúrgica da peça, feita em colaboração entre o elenco, Newton Moreno e Alvaro Assad. Um dos principais disparadores do espetáculo foi a experiência vivida no projeto Palhaços Sem Fronteiras, instituição que leva a arte da palhaçada para zonas de confronto. É nesse tipo de experiência que fica nítida a importância da arte para trazer alegria, humanidade e impulso de vida a quem passa por tal sofrimento. Sendo assim, a dramaturgia traz a contraposição entre o despropósito da guerra – fruto da ganância e opressão do povo –  e a necessidade da arte – fonte de sentido para a vida.

Qual o sentido da guerra? Quem está preparado para isso? Talvez os ordinários, quem “não tem moralidade”, “mesquinho”, “mau-caráter”, como um general que muda de lado apenas por interesses próprios. Mas não os ordinários, pessoas “comuns”, “normais”, “medíocres”, que apenas são usados como “bucha de canhão”.

A mímica, por meio de gestos, nos faz enxergar aquilo que não está sendo mostrado de fato. Esse segredo compartilhado entre artista e público gera uma cumplicidade ímpar que cria grandes efeitos de comicidade e entusiasmo. O mesmo ocorre com as críticas às armas, ao militarismo, à ganância da guerra, à banalização da violência e do ódio, que aparecem nas entrelinhas do espetáculo.

Esses questionamentos são feitos por meio de diálogos, da inadequação das personagens à vida militar, das paródias da militarização, do deboche do autoritarismo e de anedotas. A mais significativa delas, conta que um soldado estava em sua barraca cercado por um campo minado e não conseguia escapar, pois só podia caminhar até o ponto onde já tinham corpos mortos no chão, dali para frente, havia o risco de minas terrestre. Então, para evitar a morte, ele sempre retornava à barraca. “Era sempre assim. Ficar ou arriscar-se nas minas”, diz o soldado poeta. “Mas, como fugir da guerra quando já se deixou que as minas fossem plantadas?”.

A narração nos convoca para o campo de batalha, afinal somos todos – e todas! – ordinários, pessoas comuns. Na conjuntura atual, mesmo ainda não estando preparados, será preciso lutar. Se alguém pisou no campo minado, agora já não adianta mais saber quem foi… não há mais como fugir da guerra, mesmo que simbólica. Ao fronte! De frente!  Allez hop!

Texto produzido durante o laboratório (Dis)Parem as máquinas! – fundamentos e práticas de crítica circense, sob supervisão de Maria Carolina Vasconcelos Oliveira.

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*“A guerra não acaba quando chega ao fim. É uma ferida que cicatriza, mas nunca para de sangrar”.

Ordinários com LaMínima Circo e Teatro trata com humor crítico as situações vividas por três soldados numa zona de conflito.

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