Circo e música, respeitável público…

Afinal, existe circo sem música? Considerando a história da relação inventiva, complexa e dinâmica entre circo e música; considerando que o silêncio é música, grávido de possibilidades de escuta e paisagens sonoras; considerando que a emissão de sons provocada por respiros e passos é trilha, é difícil conceber a arte circense sem o diálogo com a música.

O circo se caracteriza pelo hibridismo artístico, que agrega diversos saberes, estabelecendo-se como um “espaço de construção de singularidades”, como coloca a historiadora Ermínia Silva (1996), e mesmo como um “desinibido espaço de apropriações simbólicas”, como aponta Walter Sousa Jr. (2011).

Durante o século XX, constata-se que os picadeiros, embaixo das lonas que transitavam – e conti-nuam a transitar – por diferentes localidades, configuraram-se como lugar possível e acessível de expressão artística das mais diversas linguagens. Vê-se isso também pela ausência de outras estru-turas que pudessem abarcá-las, pela potência da itinerância, mas genuinamente pela porosidade que caracteriza o circo, sempre aberto à pluralidade de elementos, signos e referências. Ele se faz por essa diluição de fronteiras entre linguagens, contemporaneamente com o desafio de não dei-xar de ser, ou ser sabido, como circo. A música, dentro dessa multiplicidade de expressões em trânsito, acaba por ser uma ferramenta de expressão que amplia suas possibilidades de sociabili-dade, de divulgação, de construção de espetáculo e de estética, compondo um discurso sonoro dentro da criação circense.

As playlists dos espetáculos atuais parecem manter o ecletismo característico dos circos itineran-tes principalmente no século XX. É possível ouvir, num mesmo espetáculo, o universo pop radio-fônico; a música erudita ocidental; o repertório clássico circense; músicas tradicionais de determi-nadas localidades; canções e músicas instrumentais, ciganas, judaicas, caipiras, sertanejas… Tudo é possível quando se trata de circo. E o impossível também é bem vindo, na excentricidade dos pa-lhaços e músicos.

A proeza, característica intrínseca do fazer circense, também aparece na música de circo. Para além da proeza técnica – de circenses que são, de fato, excelentes músicos – são recorrentes ou-tras proezas: de se realizar música com os recursos disponíveis, de forma inventiva, ressignifican-do objetos cotidianos como instrumentos musicais; de se tocar um instrumento ao mesmo tempo em que se realiza uma modalidade circense; de se elaborar um discurso sonoro que constrói e direciona a dramaturgia ou intenção cênica; dentre outras formas da poética da proeza musical circense.

Na contemporaneidade, ampliaram-se as possibilidades estéticas, a partir de inovações tecnológi-cas, bem como do fácil acesso à produção artística mundial. Continuam existindo múltiplas formas de circo, expressas em diversas tendências, inclusive na relação circo/música. Existem caminhos de resgate do que se viveu sobre música no circo país afora – desde o repertório de circo-teatro, os truques da música excêntrica circense, à procura por se retomar a música ao vivo nos espetácu-los.

Outros exploram ferramentas tecnológicas musicais, como pedais de loop e software que relacio-nam música e cena. Outros buscam um caminho de autoralidade (autoral), apontando a sua leitu-ra de circo pelo que se viu e pelo que existe, muitas vezes compondo suas próprias trilhas. Outros abordam a metalinguagem, partindo muitas vezes da subjetividade autobiográfica, explorando o cotidiano de treinos, imprimindo como trilha seus silêncios, saltos, fôlegos, impactos aéreos… En-fim, muito se busca, muito se repete, muito se resgata, muito se pretende.

O circense é, pela natureza do seu ofício, um ser disposto. E, pela natureza de sua arte, transgres-sor. Apresenta outra visão do mundo e da vida, desafiando as arestas do impossível, propondo sua perspectiva fantástica sobre o cotidiano, apontando o risco inerente à vida de todos. A essa poéti-ca do insólito, do extraordinário, do fora do comum, a música se apresenta como parceira do circo passado, do circo de hoje e, provavelmente, do que há de vir por aí.

 

SILVA, Ermínia. O circo: sua arte, seus saberes – O circo no Brasil no final do século XIX a meados do século XX. Campinas: Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp. Dissertação de mestrado, 1996

SOUSA, Walter. Mixórdia no picadeiro: circo-teatro em São Paulo (1930-1970). São Paulo: Terceira Margem, FAPESP, 2011. 214p.

 

Lívia Mattos é acordeonista, circense, cantautora e socióloga. A partir da sua pesquisa documental sobre a música no circo, desenvolveu performances como “A sanfonástica mulher-lona”, “Trigê-meas”, “Mono amour”, “Sanfona aérea” e o show-espetáculo “A Lira da lona”. Prepara atualmen-te um documentário longa-metragem sobre o tema. Já participou de festivais internacionais, como Accordions Around the World, em Nova York, EUA (2015), Akkorden Festival Wien, em Viena, Áus-tria (2016, OneBeat, em diversos estados dos EUA (2017), e International Macau Parade, em Ma-cau, China (2018). Tocou com artistas como Chico César, Rosa Passos, Badi Assad, Ceumar e Ales-sandra Leão.

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