Circo em revolução

Nos últimos 30 anos, o circo tem nos surpreendido com seu crescimento em muitas direções. A proliferação de espaços de ensino e, em consequência, de novos atores da cena circense, tem incrementado uma cadeia de produção que inclui criação de espetáculos, inovações técnicas, produção teórica e aproximação com diversas modalidades esportivas, mas, sobretudo, produção de linguagem. É eloquente o número de espetáculos criados por sujeitos e coletivos que se preocupam com a escrita da obra e com seus possíveis efeitos sociais. A produção atual tem espetáculos com discursos poéticos, de naturezas muito distintas das referências circenses de pouco tempo atrás.
O circo parece viver uma revolução ontológica, na qual se põem novamente em questão os paradigmas da sua própria identidade. Não por acaso, frequentemente nos perguntamos: isso é circo ou dança, circo ou teatro, número ou performance, malabares ou artes plásticas?

Talvez estejamos diante do nascimento de um novo gênero. Circo de criação? Circo performance? Circo dança? Circo teatral?

Na cena circense atual, há uma intensa interface com outras linguagens, o que faz pensar no grau em que essas linguagens se articulam.

O circo é e foi de fato um campo pluridisciplinar, não só pela variedade de técnicas e conhecimentos que envolve, mas pela integração de outras linguagens artísticas presentes no espetáculo como a música, a dança, o teatro, a cenografia, a iluminação etc. Isso não é novo. Historicamente, o circo ampliou os limites de sua diversidade, alimentou-se do convívio entre diferentes domínios artísticos e continua sua natureza inventiva voraz.

Mas o fazer interdisciplinar, que diz respeito à transferência de métodos de uma disciplina para outra, parece se aproximar ainda mais dos tipos de relação que observamos hoje nas criações circenses. Já não se trata da soma e da interação de elementos de diferentes linguagens, mas de uma transferência de procedimentos de uma linguagem para outra.

Hoje, vemos cenas, números e espetáculos que se configuram a partir de princípios oriundos da dança, como repetição, escrita com frases de movimentos, detalhamento do gesto, precisão rítmica, aprofundamento do gesto coreográfico, e mesmo obras que tomam procedimentos das artes plásticas, como criações a partir da luz, de contrastes, de figura e fundo ou do estudo das cores, para dar alguns exemplos.

O circo dito contemporâneo concebe o gesto como unidade mínima da linguagem circense. Não mais o número, a ação ou a figura, mas o gesto, o movimento que contém uma carga expressiva. O que poderia então definir o gesto circense? Seu caráter acrobático, virtuoso, grotesco, a realização da proeza?

Para a dramaturga belga Bauke Lievens, o que se expressa hoje no trabalho de muitos circenses não é a velha visão de maestria, proeza ou superação do homem frente à natureza, mas talvez uma compreensão da ação humana que é fundamentalmente trágica. Para ela, o que aparece em cena é uma batalha com um adversário invisível, na qual o objetivo não é vencer, mas resistir e não perder. O circo seria, ao mesmo tempo, a promessa de tragédia e a tentativa de escapar dela, o que tornaria o artista de circo um herói trágico. Sem dúvida, a reflexão se aplica a muitos casos, o que nos leva a pensar que essa construções falam de algum modo de uma problemática intrínseca a seu próprio fazer.

Por um lado, as imposições da linguagem parecem estabelecer limites técnicos para comunicar sentidos complexos como os que alcança a palavra, mas, por outro, o circo não está restrito ao uso do verbo, já que a diversidade expressiva circense inclui tanto a voz como o gesto. Mas, se o circo pode incorporar tudo o que deseja a fim de comunicar, o que define sua própria essência?

Será que, na condição de linguagem, o circo é capaz de, como o teatro, comunicar temas tão amplos como os que expõe a própria literatura dramática?

Voltamos à ideia de revolução. Muitos circenses partilham da necessidade de transformar parâmetros e paradigmas dessa linguagem que se quer tão ampla e tão diversa. A inovação e a criatividade exigem que tanto os artistas circenses como os produtores, programadores, educadores, agentes culturais, patrocinadores, gestores públicos e até a plateia permitam que o circo se aventure em terrenos desconhecidos.

Numa época em que se questionam os valores da cultura, o circo precisa fomentar o debate, duvidar da cópia, abrir as portas para habitar terras estrangeiras e aceitar a diversidade para contribuir com a função crítica da arte.

 

Erica Stoppel é artista circense e pesquisadora radicada em São Paulo desde 1992. É mestra em Artes da Cena pelo Instituto de Artes da Cena da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e licenciada em Atuação pela UNA (Universidad Nacional de las Artes), de Buenos Aires, Argentina. É co-fundadora do Circo Zanni (2004), do Piccolo Circo Teatro de Variedades (2013) e da Cia das Rosas (2017). Criou com Ziza Brisola a Companhia Linhas Aéreas em 1999 e foi co-fundadora da Companhia Nau de Ícaros em 1993. Criou também a Central do Circo, que atuou em São Paulo de 1999 a 2003. É autora de “Manual de trapecio fijo – técnica en las artes del circo” (Buenos Aires, Libros UNA, 2018) e de “Trapézio Fixo – material didático” (2010), disponível em circonteudo.com/livraria/trapezio-fixo.

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